2020
Trabalhos de Juliana Hoffmann
*Texto publicado no catálogo Sobre Viventes
Kenneth G. Hay
Tyger Tyger burning bright,
In the forests of the night:
What immortal hand or eye,
Dare frame thy fearful symmetry?
William Blake, The Tyger[1]
Na imaginação ocidental, de Dante a Blake, a floresta tem ocupado um lugar-chave. Para Dante, era a
selva escura, a floresta de nossos medos e tentações, afastando-nos do verdadeiro caminho da retidão e
salvação. Para o homem/mulher medieval, era o Outro desconhecido, o lugar onde forestieres,
estrangeiros, viviam e, algumas vezes, emergiam com seus modos estranhos e hábitos ameaçadores[2]
.
Para Blake e os românticos, Caspar David Friedrich, por exemplo, a floresta era a comprovação do nosso
eu interior escuro ou símbolo do infinito inefável. Uma coisa incomensurável a ser sentida, temida ou
contemplada.
É certamente verdade que nós, no Ocidente, raramente experimentamos a sensação de infinita expansão,
eterna imutabilidade e total impenetrabilidade, que o homem ou mulher medieval devem ter sentido com
relação à floresta. Florestas medievais na França e Inglaterra estenderam-se quase ininterruptas do
Mediterrâneo até o Planalto Escocês.
A história do homem e sua atual crise é, contudo, ligada ao desmatamento. E no centro da questão, está o
crescimento populacional. Quando pesquisamos as estatísticas mundiais de crescimento populacional da
Pré-História até aproximadamente 1750, os números aumentam quase que imperceptivelmente ao longo
de milênios. O gráfico é lento, subindo levemente, numa linha horizontal muito longa.[3] Os humanos,
geralmente, viviam por tempo menor e mais incerto do que agora, enquanto a natureza sempre foi imensa
e abundante. Com o advento da Revolução Industrial e o começo da era moderna, o gráfico populacional
deu um salto numa linha quase vertical, continuando a duplicar e triplicar com a sempre crescente rapidez,
desde então. Fatores tais como desenvolvimento na medicina, saúde, agricultura, habitação, vestuário,
dieta, transporte, energia, ciência e tecnologia têm aumentado a longevidade e produtividade
exponencialmente, tal que o capitalismo tem conseguido nos convencer com a ideia de crescimento
econômico quase sem fim, com uma população sempre em crescimento, cada vez mais saudável, e com
vida mais longeva.[4]
A realidade é mais complexa: o desenvolvimento é desigual sobre o globo, como é o acesso aos recursos,
assistência médica e os benefícios da modernidade. Mas o equilíbrio entre humanos e a natureza está cada
vez mais ameaçado. J. G. Ballard, em Concentration City, previu um futuro não tão distante, em que cada
centímetro quadrado do planeta terá uma construção, incluindo todos os mares e rios, formando uma
megalópolis contínua de concreto com muitas centenas de pavimentos (andares) e ligados por um serviço
de metrô subterrâneo circular sem fim, no qual é proibido fazer o circuito completo, em caso de a
população descobrir que não sobrou espaço. Não existe mais natureza, exceto em estufas e fábricas
fechadas de produção de alimentos.[5]
A ficção científica extrapola os fatos do presente. Na realidade, o cartógrafo americano Richard Florida,
em Who is your City?, através da análise de fotografias noturnas da Terra emitidas por satélites, descreve
o nascimento das primeiras megarregiões, as quais descreve conglomerações urbanas transnacionais em
expansão, por exemplo, ao longo da fronteira França/Holanda; ou ligando a costa leste e oeste da
Inglaterra, de Liverpool a Hull, a se juntarem para se tornarem uma megacidade. Na China, a maior
cidade de todos os tempos está agora a caminho como uma megacidade em andamento.[6]
Nós sabemos que o espaço da Terra é finito, como são seus recursos, seus metais preciosos (de fato, todos,
é claro, são preciosos), seus combustíveis fósseis, sua terra cultivável, sua água, até mesmo seu ar. E a
raça humana não pode se expandir contínua e infinitamente, consumir infinitamente, desperdiçar e poluir
infinitamente. Em algum ponto, as coisas têm de parar, e nós precisamos reestabelecer a harmonia entre
população e recursos sustentáveis.
Culturas indígenas, há muito tempo, apegaram-se a isso, a única visão sensível e, talvez, nós ainda
tenhamos tempo de aprender e praticar sua sabedoria. Certamente há uma crescente sensibilização no
Ocidente para o fato de que, literalmente, nós respiramos o respiro das árvores e, por exemplo, um em
cada cinco respiros no mundo é produzido pela floresta tropical Amazônica. Sua perda, à medida que a
população se expande, é literalmente uma asfixia dupla para nós.
O trabalho de Juliana Hoffmann é uma dessas tentativas de aprender algo a partir da floresta, em seu caso,
as florestas próximas de Florianópolis, no sul do Brasil, e refletir sobre essas questões.
No romance de Gabriel Garcia Márquez, O outono do patriarca, o corpo lentamente em decomposição do
ditador, morto em seu Palácio Presidencial, mantém o ritmo com a floresta lentamente invasora, enquanto
trepadeiras, pássaros e répteis lentamente abrem caminho para dentro de sua casa em ruínas e começam a
apagá-lo de nossa muito curta história humana.[7] É em tais metáforas da resiliência da natureza e da
efemeridade dos ditadores que Juliana Hoffmann consola-se. De um background literário, a artista, cujo
pai é reconhecido como um eminente escritor brasileiro, tem sua matéria-prima nos livros, utilizando-os
literal e metaforicamente. Esses produtos efêmeros da imaginação humana, dado um fim temporário e
uma forma impressa, armazenados em caixas, esquecidos em sótãos, juntando pó nas estantes, são
lentamente mordidos, mastigados e corroídos por insetos, cupins (vermes) e bolores.
Ao descobrir alguns volumes negligenciados nos depósitos, Juliana Hoffmann ficou fascinada pelos
padrões de túneis e corredores criados pelos insetos nos volumes. Então, começou a usar essas novas
formas aleatórias encontradas como inspiração para um processo de criação. Fez monotipias a partir de
algumas superfícies com textura de madeira erodida ou sobrepôs imagens fracas de árvores e trepadeiras
sobre as frágeis páginas de livros, adicionando uma imagem ao texto ou, ainda, costurou uma linha de
algodão, vermelha para ser mais visível, através dos minúsculos buracos deixados pelos cupins, mais
tarde adicionando suas próprias perfurações com a ajuda de uma agulha. Algumas dessas páginas, simples
e duplas, foram colocadas em acrílico transparente e dispostas sobre caixas de luz, de forma que as
perfurações tornam-se visíveis, como um delicado rendilhado. O espectador era convidado a selecionar
um slide e colocá-lo sobre a caixa de luz para ver o modo como as perfurações adicionavam uma nova
dimensão à imagem: às vezes, as perfurações seguem os contornos de uma árvore ou galho, tornando-a
espectral, ou novamente as perfurações, em aglomerados, parecem sugerir uma luz fraca filtrada através
da escuridão impenetrável da floresta, ou tapetes de folhas, como neve, reunidos em torno dos pés das
árvores.
Alguns desses primeiros trabalhos impressos e bordados, junto com as caixas de luz e páginas de livro
com proteção do acrílico foram expostos no Festival Internacional de Arte de Larroque, no sudoeste da
França, em 2018, tendo sido desenvolvidos durante a residência artística no mesmo local.[8] Larroque
também fica próximo a uma floresta do tamanho da cidade de Paris, uma das sobreviventes da floresta
medieval a qual é agora protegida e gerenciada pelo Estado da França.
Esses processos têm, por sua vez, dado início a pinturas em grande escala em técnica acrílica e mista,
algumas vezes incorporando galhos reais e matéria texturizada, que expandem, literalmente, as complexas
camadas de texturas dos livros. As pinturas inspiram-se, tanto na qualidade luminosa e espectral das
pequenas páginas de livros perfuradas, como nas memórias da floresta original, mas desenvolvem, com
uma majestosa melancolia, algo maior e mais assertivo. Nisso, a artista vai de uma delicada seleção de
objetos efêmeros e frágeis a demonstrações pictóricas ousadas e declaradas sobre a luta para encontrar luz
numa escuridão sempre invadida. As perfurações são agora transformadas em agrupamentos de pontos
brancos, sugerindo a presença fantasmagórica de um emergente galho ou luz rompendo a escuridão.
Geralmente, entretanto, é a escuridão que domina.
O processo de costura desenrolou-se para uma videoanimação, em que o acúmulo da linha vermelha é
gravado, tornando visível um tempo que decorre de um início suave para um final densamente costurado.
É claro que esses trabalhos operam em, ao menos, dois níveis: para a artista, eles são uma constante fonte
de inspiração e pesquisa em processo, tempo, teleologia, forças naturais, transformação e transitoriedade.
Para o observador, eles ajudam a sensibilizar e a estimular a consciência dessas questões no contexto da
globalização, geopolítica e ecologia, e, não podemos esquecer, são criações poéticas e originais no seu
direito de serem consumadamente bonitas, delicadas e fortes.
Se não estivermos já perdidos na escura floresta de nossa própria produção, seu esplendor, frágil e
persistente, ainda nos oferece algum vislumbre de uma futura luz por vir.
[1] BLAKE, William. Songs of Innocence and Experience. 10th ed. (First Published, 1794) London: University Tutorial Press
Ltd.,1958, 1977. ISBN: 0-7231-0043-8, p. 21-22.
[2] VERDON,,Jean. “La nuit au Moyen Age”: ‘Forestiere’ (someone from the forest) is a Florentine word for ‘stranger’. Paris:
Perrin, 1994.
[3] HAYWOOD, John. The New Atlas of World History. London: Thames & Hudson, 2011.
[4] BERMAN, Marshall. The Experience of Modernity. In: BERMAN, Marshall. All that is Solid Melts into Air. London:
Verso Editions, 1982 reprinted 1983. p. 15-36. ISBN: 0-86091-785-1.
[5] BALLARD, J. G. The Concentration City. In: BALLARD, J. G. The Disaster Area. London:,Jonathan Cape, 1967.
[6] FLORIDA, Richard. Who’s your City?. New York: Basic Books, 2008.
[7] MARQUEZ, Gabriel Garcia. The Autumn of the Patriarch. London: Jonathan Cape, 1977.
[8]
Informações sobre essa exposição estão disponíveis em: