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2020

O Corpo que desperta pensamento

*Texto publicado no catálogo Sobre Viventes

Onor Filomeno


O corpo é o que desperta a dor profunda e pode igualmente despertar o pensamento profundo. Ambos precisam de solidão. 

Walter Benjamin





Tenho encontrado certa dificuldade para me emocionar diante da produção das artes visuais dos dias atuais. Poucos trabalhos movimentam-me internamente com vigor ou conseguem tocar meu inconsciente, meus instintos, minha alma. Normalmente tenho de recorrer aos argumentos racionais, às referências históricas ou à dimensão do impacto do discurso social banalizado para criar uma conexão um pouco mais forte com a imagem apresentada diante de mim.


Mas quando a arte vem ao mundo corporificada por um artista que pensa através de suas mãos; quando conseguimos escutar a mensagem que sobrevive no mais profundo abismo de quem se expressa, vinda diretamente de sua ancestralidade; quando revelamos as imagens, cores e ritmos que pertencem a todos os seres; quando essa arte já não possui mais geografia, língua ou adereços específicos, mesmo que essa arte seja filha de um indivíduo solitário em alguma vila isolada, aí essa arte ganha uma dimensão singular. Ela tem verdadeiramente o que dizer, imagens que instantaneamente aderem ao nosso paraíso, purgatório ou inferno.


Foi exatamente essa experiência que encontrei diante dos trabalhos de Juliana Hoffmann, na exposição chamada Sobre Viventes. Um trabalho profundo, íntimo, de uma sensibilidade incomum e rara, além de uma técnica rigorosa. Sua singularidade está no mergulho que dá para dentro do seu próprio ser mais profundo. Uma caminhada longa, feita por entre corpos familiares, músculos e tecidos conhecidos, florestas antigas, velhas paisagens. Vejo, naquelas imagens, pinturas, fotos, páginas antigas, costuras e suturas, as entranhas da própria artista sendo apresentadas ao fruidor.


Ela foi em busca dos frutos mais altos da árvore, não se contentando com aqueles que estavam à mão, não procurou os atalhos, não se recusou a sacrificar os resultados fáceis e precedentes. Percebe-se que levou ao limite os elementos manipulados, mas de forma fluida, simples, sem alguma afetação visual, com um rigor digno das grandes obras.


A cor da carne, seus poros pontilhados sobre a pele, linhas ou eixos ligando tendões, veios, artérias, nódulos, elementos que pululam por toda a mostra. Presentes nos ocres, nos diversos matizes terrosos, nas texturas e rugosidades, no caráter orgânico das imagens. Esse universo remeteu-me para a frase atribuída a Rembrandt: A pele é lama que a luz transforma em ouro1. A exposição de Juliana Hoffmann trata de uma dissecação dos corpos biológicos e espirituais, e aí reside sua grandeza, não existe nos trabalhos um discurso redutor ou raso. Pelo contrário, o som das formas vem de longe, é imemorial, complexo e amplo. Suas imagens chegam-nos através de cavernas profundas, da escuridão do sono, do silêncio da morte.

As imagens vêm a nós, como também vêm as massas de luz por detrás dos fragmentos sombrios do primeiro plano, mais próximo do fruidor. A sensação de profundidade obtida pela artista nessas pinturas, da mesma forma, revela a maturidade de sua técnica. As massas de cores claras estão no mesmo plano das cores escuras, não existe alguma artificialidade, como diluição, recurso de perspectiva, para conseguir o efeito de profundidade que se deseja. A relação entre as massas de cores claras e escuras sugam e repelem o observador simultaneamente.


Na arte em que Juliana Hoffmann apresenta o profundo e o superficial, o primeiro plano e o distante são uma e a mesma coisa: pintura. Elementos acoplados, como se fora uma metáfora sobre a extrema semelhança entre essência e aparência, transcendência e imanência. Esses elementos, aparentemente distantes em qualquer imagem convencional, encontram-se rigorosamente no mesmo plano pictórico, com o mesmo peso e carga de tinta, causando um estranhamento e um desconforto para olhares mais desatentos.


Já as linhas, os pontos, as perfurações, as sombras e as luzes formam um conjunto harmônico, intenso e expressivo. Nos diversos formatos, pequenos. com dez centímetros, e grandes, com mais de um metro, a força expressiva é a mesma, isso comprova a resistência e a intensidade das imagens criadas. Forma, conteúdo e as mídias, ou o plano básico, como dizia Kandinsky, escolhidos pela artista, estruturam solidamente cada uma das obras.


As linhas ou suturas que amarram as imagens constituem-se como eixos de um outro universo particular. As linhas costuradas através da rede de pontilhado branco e luminoso criam imagens que se projetam a partir da pintura, numa sobreposição em camadas. Esse requinte técnico retira-nos de um plano e coloca-nos em um contraplano, novamente no campo da biologia, esses pontos luminosos remetem ao efeito mágico da bioluminescência que observamos nos oceanos com seus plânctons, algas e bactérias. Um elemento úmido que compõe os pântanos imagéticos da artista, com suas sombras, frestas de luz, raízes e corpos dissecados.


Citando Kandinsky, mais uma vez, quando ele nos diz no seu livro Ponto e Linha sobre Plano: Todos os fenômenos podem ser vividos de duas formas. Essas duas formas não estão arbitrariamente ligadas aos fenômenos – decorrem da natureza dos fenômenos, de duas das suas propriedades: Exterior e Interior.


O ponto essencial desses trabalhos de Juliana Hoffmann é a precisão com que arranca a imagem interior e a plasma em um plano para revelá-la ao exterior.  Ambas as propriedades são uma e a mesma coisa, é visível a unidade entre a mensagem subjetiva, intuitiva e a sua revelação física, material. Nessa fronteira, reside o que sentimos diante da obra vigorosa e contundente desta artista.




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