2025
Formas sobreviventes: Juliana Hoffmann
*Texto publicado no catálogo Por um fio
Raul Antelo
O fio é algo muito simples: apenas uma linha no espaço. Mas é também algo de muito complexo: um novelo, um emaranhado. O fio sustenta a estrutura (teia de aranha, cordame, rede de ligaduras), mas pode também se desfiar e, de repente, se romper. Ele se junta (fiação, malha) ou se alinhava (laço, franja, trança). Ele traça um destino (as Parcas), nos aprisiona (amarras, laços) ou se divide em quatro (racionalizações, argúcias, subterfúgios). Guia-nos para o melhor (Ariadne, curso d'água) ou nos extravia para o pior (cipós, cardos). O fio liga, encadeia e dá curso. Ou, ao contrário, corta, afia, amola e faz romper. O fio está sempre por um fio. Essa é sua beleza - seu belo risco - e sua fragilidade. Daí que a noção de soberania se mantenha ela própria sobre o fio, como essa figura funambulesca que encontramos, antes do filme de Steve McQueen, num admirável texto de Jean Genet em que o dançarino de corda servia de parábola ao duplo status - soberania, impoder - do artista em geral.
Georges Didi-Huberman – Sobre o fio (2013).
Marcel Duchamp assumiu as rachaduras acidentais do suporte material de seu Grande vidro como um dado do Acaso que, no entanto, escrevia a história. Um objeto fechado em si mesmo dava enfim a ver sua melancolia, seu abandono. A beleza da obra-prima ofuscava, paradoxalmente, a relevância da obra, do simples trabalho como deliberação do Artista. Da mesma forma, quando Juliana Hoffmann recolhe, na biblioteca paterna, o exemplar, sulcado pelas traças e térmitas, de The Building of the Modern World (1942), de John Adams Brendon, sua abertura ao Acaso ressignifica seu trabalho a partir da coleção de traços-das-traças, marcas da vida não-humana, como condicionantes de nossa própria vida.
Ressignifica-se, assim, A Construção do Mundo Moderno (2021). Há, nessa acolhida do Acaso, igualmente reconhecível nas séries Surviving Forest (2018) e Sobre Viventes (2019), um declínio dos grandes atores históricos e dos espaços públicos em que eles se movimentaram; mas, ao mesmo tempo, uma politização de amplo espectro da vida social e comunitária, que abre passagem a uma proliferação de identidades particulares. Refletir sobre a emergência dessas novas experiências e desses atores sociais emergentes, que ultrapassam os marcos clássicos do que entendemos como “comum” (na sociedade, na cultura, na obra específica), obriga-nos a aceitar o desafio que tais particularismos impõem ao modelo iluminista convencional. E a consequência mais contundente desse processo é levarmos em consideração a contingência com que se produzem essas alterações ou modificações. A possibilidade de ser ou de não ser, diria Aristóteles.
Desde A contingência das leis da natureza (1874) de Émile Boutroux contingência é sinônimo de indeterminação, do livre e até mesmo do imprevisível, ou seja, aquilo de impensado que se encontra ou age no mundo natural. Porém, entre a necessidade natural (non poter non essere) e a contingência cultural (poter non essere), a tateante contingência moderna constrói, digamos assim, uma contingência ao segundo grau, que não garante qualquer liberdade e que, como não pode não ser, nos impõe o irreparável, a coerção generalizada.
Já em A evolução criadora (1907), Henri Bergson estipulou que toda ordem é, no fundo, necessariamente contingente. Se há duas espécies de ordem, essa contingência da ordem explica-se pensando que uma das formas é contingente com relação à outra. Ali onde, por exemplo, vemos o dado geométrico, o vital é igualmente possível; ali onde a ordem é vital, bem caberia a geometria. Mas admitindo que só haja uma ordem e ela seja, por toda parte, da mesma espécie, comportando, simplesmente, diferentes graus entre o geométrico e o vital, é forçoso concluir que, uma vez que uma ordem determinada continua a nos aparecer como contingente, ela já não pode mais sê-lo com relação a uma ordem de um outro gênero. Conclui-se, então, que toda ordem é contingente com relação a uma ausência dela própria, isto é, com relação a um estado de coisas em que não existiria ordem, de modo algum.
Colocamos, portanto, no topo da hierarquia, a ordem vital; depois, como uma diminuição ou uma complicação simplificada desta, a ordem geométrica e, por fim, lá embaixo, a ausência de toda ordem, o caos, a incoerência mesmo, às quais a ordem se superporia, dominadora. É por esse motivo que a incoerência, mesmo a seu pesar, sempre dá a impressão de algo racional, porém, escondido, contido, sequestrado. Mas se observamos que o estado de coisas implicado pela contingência de uma ordem determinada é simplesmente a presença de uma ordem contrária, e se, por isso mesmo, colocarmos duas espécies de ordem, uma inversa da outra, enfrentadas, é fácil concluir que não é possível imaginar graus intermediários entre as duas ordens e que também não é possível descer dessas duas ordens para o incoerente ou confuso. Duas alternativas impõem-se: ora essa incoerência é apenas algo carente de sentido; ora, se lhe confiro uma significação, é sob a condição de pôr a incoerência a meio caminho entre as duas ordens e não de maneira escondida, soterrada, em baixo de ambas. Não existe evolução. Não há progresso. “Não há o incoerente primeiro, depois o geométrico, depois o vital: há simplesmente o geométrico e o vital, e depois, por uma oscilação do espirito entre um e outro, a ideia do incoerente. Falar de uma diversidade incoordenada à qual a ordem vem se acrescentar é, portanto, cometer uma verdadeira petição de princípio, pois ao imaginar o incoordenado pomos realmente uma ordem ou, melhor, pomos duas”. A realidade, a história não podem passar da tensão para a extensão e da liberdade para a necessidade mecânica por via de inversão. Não basta estabelecer que essa relação entre os dois termos nos é apresentada, ao mesmo tempo, pela consciência e pela experiencia sensível. Há o inconsciente da obra que catalisa a obra-prima.
A contingência é o puro possível, um possível elevado à condição de uma subjetividade, um valor, na arte, buscado, ao menos, desde Duchamp, que não sugere apenas que tudo pode acontecer, mas afirma, fundamentalmente, que nada, de fato, acontece e mais ainda, que mesmo aquilo agora existente pode muito bem continuar sendo tal como ele é agora, sem chance de transformação. Os grandes utopistas da arte e da política tiveram sensibilidade para essa contingência, por sinal, nada alheia ao conceito freudiano de Trieb. Entre essas duas esferas, digamos assim, a de humanos e a de não-humanos, um fio vermelho, o Akai Ito, trama a história.
A Fundação Serralves, no Porto, organizou a exposição (nov. 2024-maio 2025) Tendo em linha de conto os tempos atuais, título tirado de Trailer do filme que nunca existirá “Guerras de Mentira” (2022), de Jean-Luc Godard. Não é em vão, portanto, que o jovem Godard, em Alphaville (1965), já pensasse essa nossa comunidade como uma sociedade técnica, idêntica à dos cupins e das formigas. A seu modo, tendo também em linha de conto os tempos atuais, Juliana Hoffmann nos mostra, por um fio, o espelho em que não queremos nos reconhecer: a nossa sociedade já é Alphaville.
1BERGSON, Henri – A evolução criadora. Trad. Bento Prado. São Paulo, Martins Fontes, 2005, p. 256-7.