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2024

Exaptações

*Texto para o folder da exposição Exaptações

Rosangela Cherem

Juliana Hoffmann nos oferece uma exposição sofisticada, a qual, por sua vez, requer nossa sensibilidade e capacidade de reflexão. Diante de suas obras estamos sempre às voltas com a pergunta: o que é isto, o que isto nos demanda, para onde deseja nos levar? Num mundo cheio de banalidades e ligeirezas, cada uma delas parece nos murmurar: 


Olhe bem para mim, você sabe quem sou? Chegue mais perto, perceba as sutilezas que contenho, esqueça quem você é, peço apenas que acompanhe minhas considerações. Posso me apresentar como um ourives, marchetando, produzindo ricos detalhes, perfurando e criando novas superfícies. Também posso me parecer com um cartógrafo a desenhar mapas, redefinir distâncias, indicar novos territórios. Se você quiser, posso ser apenas um paisagista a deslindar lugares e ignorar fronteiras. Se preferir, poderei ser um tipo de anatomista a perscrutar entranhas e órgãos, indicar os ossos corroídos pelo tempo. Não me queira mal por ser demasiado indiferente as suas valiosas leituras. É que nada disso interfere sobre meus sentidos ou direção, tampouco sobre as leis que ditam minha sobrevivência. Bem verdade que cada uma de nós só se tornou obra, primeiramente, pela ação de seres muito minúsculos, mas que não podem ser subestimados, pois são capazes de fazer você pensar a sua própria fragilidade e ausência. Considerados insignificantes, os cupins estão neste mundo muito antes da sua chegada e ficarão muito depois que tivermos partido.


Interessante observar que, em muitos de seus trabalhos, Juliana Hoffmann apenas aproveitou o que já havia sido feito pelos cupins: transformou um livro destroçado com partitura de músicas num objeto escultórico protegido por uma cúpula de acrílico, espalhou capas de livros numa parede como se fossem pequenas pinturas. Porém,  há trabalhos em que a artista interferiu diretamente: perfurou, desenhou, bordou, sobrepôs. Com espantosa firmeza de traços e obstinada repetição, criou conexões entre coisas díspares, circundando furos como ondas vibratórias expandidas até quase sua diluição através das páginas.


Diante de suas obras perpassa uma gama enorme de semelhanças deslocadas que existe apenas pela capacidade de projetar outros modos possíveis de existência. Perante o irreparável que foi a destruição da biblioteca paterna, e das  distantes lições de bordado proporcionadas pela mãe até em seu próprio leito de morte, Juliana Hoffmann ressignifica o perecível, cria com os restos materiais e mnemônicos, concedendo-lhes outras configurações. Merecem destaque os delicados interruptores, cujas caixinhas foram pintadas de preto em seu interior e em cuja superfície das tampas surgem imagens de árvores impressas sobre páginas de livros, algumas delas bordadas, outras apenas pontilhadas. Quando acesas, funcionam como se pequenos poemas visuais pudessem nos revelar um segredo. 


Observando o conjunto das páginas dispostas como partituras de uma  meticulosa e silente sinfonia, é possível reconhecer o trabalho primoroso dos cupins, iniciado com os minúsculos pontinhos das primeiras páginas até surgirem surpreendentes pontos de interrogação nas últimas. O que podemos ouvir por meio deste símbolo gráfico, além de assinalar uma intonação quando lemos?  Primeiramente, talvez seja importante que possamos nos perguntar: quem somos nós num tempo com tantas respostas feitas de imagens e certezas que nada nos dizem, quando o futuro parece nos devorar, ao mesmo tempo em que regurgita as promessas anunciadas ao longo  da construção do mundo moderno? Algo deu ruim, alguém vai dizer, precisamos avistar logo uma saída, vai lembrar outro. Porém, mais do que responder, talvez seja necessário antes interrogar como chegamos até aqui. E não seria este afinal um modo de pensar a musicalidade muda onde o que comparece é o próprio ponto de interrogação? 


Contemplando as ruínas que construímos, quiçá tenhamos mais chances de gerar uma outra linguagem, capaz de produzir um outro olhar, com o qual conseguiremos reconhecer outras possibilidades que agora nos escapam. Quem sabe assim, estejamos mais equipados para vislumbrar outros modos de existência, além de apenas estes que somos capazes de reconhecer por enquanto. Tudo indica que não encontraremos alternativas com os equipamentos que dispomos, com eles conseguiremos apenas produzir mais do mesmo. Eis o desafio, eis a urgência.


No andar superior Juliana Hoffmann nos dá a ver as paredes de sua casa como se fossem um corpo a transpirar e a descamar, levando-nos à compreensão de que nada está apartado de nós. Somos apenas uma espécie abrigando infinitas outras espécies. Não ocupamos o centro do planeta, tampouco ele existe para nós. Nossos corpos, como nossas florestas e casas são nossa morada, somos viventes entre viventes, matéria entre matérias. Porém, se viver neste mundo é um modo de habitá-lo, por quê custamos tanto a perceber e a aceitar esta condição, a qual os povos originários já nos advertiram inumeráveis vezes, desde desde tanto tempo?


Em algum ponto cego de nossa compreensão, espreita-nos o fato de que não somos apenas seres que um dia virarão pó, mas também produtores de ruínas que ameaçam outros viventes. Se desaparecer é o traço que iguala tudo aquilo que um dia existiu e existe, pensemos melhor nossa condição de ruínas, materializada tanto nas paredes que se desfazem, como nas capas de livros esvaziadas e carcomidas. A casa construída, o livro escrito, tudo isto  foi um dia relevante para alguém, um futuro deslumbrado pela confiança nas promessas e certezas da consciência. Agora este material nada mais é do que restos visitados por insetos, os quais, além de cegos, desconhecem o indivíduo porque só existem em colônias, sendo que a matéria por eles alterada é devolvida na forma de montanhas de excrementos.


Antes que elevemos a voz para afirmar nossas diferenças, a sala ao final do corredor nos aguarda para que possamos encontrar mais afinidades com os cupins do que gostaríamos. Sobre blocos cimentícios, vemos placas de madeiras, algumas apenas envernizadas, outras mais coloridas. Nelas reconhecemos vestígios deixados por máquinas de corte, restos de uma escritura tão enigmática como são os caminhos construídos pelos insetos. Seu destino depois deste percurso? O lixo, onde a artista encontrou o material que agora funciona como vitrais de uma estranha capela, a qual nos convida a contemplar o ciclo interminável do perecível e da metamorfose, do vazio e do preenchimento, do dispêndio e da irremediável.


PS: EXAPTAÇÃO consiste num conceito advindo da Biologia, o qual  considera um tipo de adaptação que ocorre quando determinado organismo ou órgão passa a desempenhar uma nova função, diferente e independente de sua função evolutiva inicial. 


O movimento de pinça, feito pelos dedos indicador e polegar, desde tempos muito remotos, nos permitiu desenvolver uma capacidade de apreensão distinta dos demais animais, com a qual aprimoramos nossas habilidades de selecionar alimentos e produzir utensílios. Agora usamos estes mesmos dedos para realizar uma nova função para a qual  eles não foram projetados: digitar nossos celulares e computadores.  


Num sentido mais figurado, podemos reconhecer uma casa que foi feita para cumprir sua função de moradia e que, posteriormente acabou por se tornar um espaço expositivo. Do mesmo modo, podemos considerar materiais comidos por cupins que, depois de resgatados do lixo, transformam-se em surpreendentes obras de arte.



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