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2025

Entre um fio e muitos fios, modos de existir na obra de Juliana Hoffmann

texto publicado no catálogo Por um fio

Rosângela Cherem

Juliana Hoffmann (Concórdia, SC- 1965, vive e trabalha em Florianópolis) tinha pouco mais de dez anos e já desenhava e pintava. Gostava de fazer esta atividade até mesmo no carro, enquanto seu pai levava a família para passar os finais de semana no sítio. Ocorre que ali  nasciam algumas marcas que seriam suas e que a acompanhariam posteriormente nas suas telas e instalações. As linhas estavam lá: eram retas nas estradinhas e casinholas, nos postes e fios de eletricidade. Obedientes, seguiam os contornos dos morros, das árvores e das nuvens, eram tracejadas nas ondas do mar e nos telhados, eram circulares na vibração luminosa dos raios de sol. Nas suas pinturas à óleo, depois trocadas por tinta acrílica,  surgiam geométricas nas fachadas, escadarias e faixas de pedestres ou então nos pisos e assoalhos, estantes e mobílias. Mais adiante, quando resolveu dar um aspecto mais aguado para suas superfícies pictóricas, passava-lhes uma escova deixando ranhuras. 


Antes que os anos 80 terminassem, suas linhas imaginativas pareciam ceder lugar para o desenho com curvas de nível que aprendera no curso Técnico de Estradas de  nas plantas dos projetos arquitetônicos que praticara em sua formação na Engenharia Civil. No começo dos anos 90,  abandonou a profissão para dedicar-se ao que aprendia nos cursos avulsos de História da Arte e nas oficinas de desenho e fotografia. Por volta dos anos 2000, a construção desordenada dos prédios e a modificações da paisagem urbana afirmavam-se como questão recorrente em seus trabalhos e passou a combinar pinturas com fotografias na mesma superfície. As linhas, trazidas do desenho e contempladas no interior de seus quadros, passaram a ser um tipo de material enleado na tela, por vezes com uso  de parafusos e suportes acrílicos. 


Na exposição intitulada Exprimível do Vazio (Curadoria de Juliana Crispe. Fundação Cultural BADESC. Florianópolis: 2017) apresentou um conjunto de obras feitas a partir da ação de cupins e traças sobre páginas de livros e sua transformação em vestígios reconfigurados, cujas páginas foram enleadas, cerzidas ou reagrupadas, cujas capas foram dadas a ver como estamparias ou bordados, além das estruturas carcomidas que foram mostradas como objetos tridimensionais e dos títulos das obras que ganharam novos e irônicos sentidos. Na maioria dos casos, dispensando qualquer elaboração ou desdobramento em outras faturas, o trabalho da artista consistiu em evidenciar o protagonismo dos cupins e traças, atuando como uma espécie de participante atenta. Assim combinaram-se decomposição e recomposição, refazendo de modo colaborativo as demarcações entre o que é resultado da ação animal e da ação humana. 


Em Sobre Viventes (Curadoria de Rosângela Cherem & equipe. Galeria Helena Fretta. Florianópolis: 2019), Juliana Hoffmann explorou  a relação entre natureza e devastação ambiental. Se a ausência humana seguia marcante nestes trabalhos, isto se devia ao fato de ser menos para assinalar um lugar intocado e mais para destacar um sistema que sobrevive sob ameaça e risco de extinção. Através de pontilhados, perfurações e tracejados, surgiam florestas noturnas, cujos troncos e galhos compunham estranhas torções, arvores respirando pelos poros, deslindados por pequenos pontinhos, compunham um cenário por onde espreitavam perigos. Na exposição intitulada Florestas (BIENAL DE CURITIBA. Memorial Meyer Filho. Florianópolis: 2019), prosseguiu a problemática da relação humana com os vegetais, embora trazendo trabalhos mais experimentais, tais como pinturas sobre folhas de papel arroz vindas do alto da parede até se desenrolarem no chão e caixas de luz, cuja fiação elétrica ficava aparente, estendendo-se pelo chão. Nos dois casos, o papel como vestígio material da árvore, tanto ampliava a problemática da vida vegetal, como a questão da vida em sua perpétua cambiância. 


Sob o título de Exaptações (Curadoria Raul Antelo  & equipe. Fundação Cultural BADESC. Florianópolis, SC: 2024), a artista realizou uma grande exposição em que apresentava uma espécie de síntese das reflexões anteriores. Transformou um livro destroçado com partitura de músicas num objeto escultórico protegido por uma cúpula de acrílico, e espalhou capas de livros numa parede como se fossem pequenas pinturas. Circundando pontos como ondas vibratórias expandidas até quase sua diluição através das páginas, refez mapas e geografias. Também vemos as paredes de uma casa como se fossem um corpo a transpirar e a descamar, levando-nos à compreensão de que nada está apartado de nós. Como aquelas paredes comidas pelos fungos, somos apenas uma espécie abrigando infinitas outras espécies. Não ocupamos o centro do planeta, tampouco ele existe para nós. Nossos corpos, como nossas florestas e casas são nossa morada, somos viventes entre viventes, matéria entre matérias. A casa construída, o livro escrito, tudo isto foi um dia relevante para alguém, um futuro deslumbrado pela confiança nas promessas e certezas da consciência. Depois, este material nada mais é do que restos visitados por pequenos seres, os quais, além de cegos, só existem no coletivo das colônias, sendo que aquilo que os alimenta é devolvido na forma de montanhas de excrementos.


Os livros tornaram-se a principal matéria de suas obras nos últimos anos. Oriundos da antiga biblioteca paterna, eram constituídos em boa parte pela literatura inglesa, a qual a filha assimilou através de um lento aprendizado que compreendia sessões de leitura e conversas a respeito, muitas vezes em inglês. Este idioma foi um importante recurso com o qual o pai complementava o sustento da família. Também foi por conta deste material que a casa era frequentada por artistas e escritores que ali vinham para conversar, enquanto a criança e suas irmãs eram alfabetizadas. Embora tenha constatado a decomposição dos livros há mais de dez anos, um longo caminho se fez até poder amarrá-los, decompor as páginas e sustentá-las por alfinetes, expor sobre uma mesa, enquadrar em placa de acrílico e /ou sob foco de luz, bordar, desenhar sobre as mesmas e reaproveitar as capas marcadas por fungos. 

Lembrando que também a avó bordava, a artista conta que durante os últimos meses em que a mãe esteve doente, sentava-se  ao seu lado e punha-se a bordar. Esta atividade, seguiu sedimentando a relação entre mãe e filha até a beira da morte. Deste modo, a criança relembrada em sua familiaridade com as páginas dos livros  e as linhas dos bordados é reconhecida pela artista como a mesma que buscava construir a partir de seus resíduos mnemônicos, num esforço para reter um estado de plenitude infantil, numa espécie de registro eivado de vivências emoções e lembranças, processadas pelas sutilezas poéticas e as minúcias de sua fatura. 

Munidos deste panorama, onde incidem não apenas diferentes linhas e fios, como diferentes entendimentos e sentidos sobre os mesmos, observamos tres temáticas que comparecem na exposição intitulada Por um fio (Exposição de Juliana Hoffmann. Curadoria de Rosangela Cherem. Edital Sesc Pulsar - 2024/2025. Nova Friburgo, R.J: 2025).  Sobre a temática da vida vegetal,  comparecem obras desde 2018 até 2022 Sobre a temática das fronteiras, apresentam-se obras feitas antes e durante a pandemia. E, ao explorar os livros decompostos, a temática das ruínas parece ter alcançado sua melhor síntese. 

Para finalizar este texto, cabe lembrar Sobre o fio (Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2019),  livro que Didi Huberman escreveu em época muito próxima em que Juliana Hoffmann produziu a maior parte dos trabalhos que resultaram nesta exposição. Ao tratar da obra de  Steve Mc Queen, viu nos trabalhos com selos postais do artista ingles, a marca de quem preferiu criar, colocando-se sob risco e deterritorializando-se, ao invés de reduzir sua obra a um belo objeto parido por uma autoridade que renuncia à coragem e à autonomia, pronto para garantir o sucesso e assegurar à própria imagem um lugar glorioso onde permanece inarredável. Cotejando seu pensamento com O Funâmbulo de Jean Genet, o historiador reconhece que a criação  mais radical é sempre incerta, arriscada e frágil. Privilegiando não a grande obra, mas o objeto menor, lança-se para além do objeto exponível e espetacular, em proveito de uma figuração que é, ao mesmo tempo, ancestral e atual. Eis porquê Juliana Hoffmann parece pertencer a esta linhagem, pois tal como o equilibrista, sabe que, se não cair do fio, ao menos voltará a descer ao chão.


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