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2020

Divagações sobre ex-brochuras

*Texto publicado no catálogo Sobre Viventes

Fernando Boppré


A vaga impressão de que uma biblioteca extinta foi parar naquele espaço expositivo. É como aquele ruído que acompanha as transmissões radiofônicas de ondas curtas: as mensagens, por vezes, acabam obliteradas pelo chiado. Eu entrei lentamente e saí transformado, com um punhado de pensamentos, cuja categoria tende à digressão, ou seja, o afastamento do assunto principal. Irei aqui destilar algumas dessas observações. Inicialmente, trato sobre a coragem na escolha de Juliana Hoffmann do objeto livro como suporte de sua obra. Dois motivos fazem-me pensar nisso. 


O primeiro, de caráter ritualístico, se assim posso dizer, refere-se à deferência que a humanidade atribui ao livro. Não por acaso, as religiões mais cultuadas no mundo contemporâneo – cristianismo e islamismo – são fundamentadas na leitura e aceitação de frases escritas em livros como a Bíblia e o Alcorão. Mesmo fora da esfera religiosa, a base da educação ocidental é construída a partir da prática de ler e escrever, desde a infância até as mais altas graduações acadêmicas. Ou seja, o objeto adotado por Juliana Hoffman não é uma tela ou papel em branco, está distante da ideia de tábula-rasa. Pelo contrário, o livro é um depósito universal do que o ser humano aprendeu, transmitiu e cultivou ao longo da história. E por se tratar de um objeto absolutamente imerso na linguagem e na cultura, é um lugar repleto de signos, juízos e opiniões. 


A outra razão é que, recentemente, o circuito das artes visuais mergulhou de cabeça numa enxurrada de livros de artistas, inspirado nos movimentos undergrounds cosmopolitas que, a partir dos anos 1960 e 1970, produziram publicações autorais ou coletivas através de pequenas editoras, livrarias ou mesmo edições caseiras. O museu e a galeria deixaram de ser o lugar a priori para o trabalho de artistas, e isso foi uma grande sacada. Possibilitou o surgimento de outros espaços de atuação capazes de consolidar a trajetória de artistas que, por diferentes razões, mantinham-se distantes (ou distanciados) das esferas institucionais. Nessa toada, artistas brasileiros(as) contemporâneos(as) têm se dedicado a editar seus próprios trabalhos, na maior parte das vezes propondo diferentes formas de se apresentar um livro, com projetos gráficos sofisticados, tiragens reduzidas e distribuição direcionada. Considero essa tendência interessante, eu mesmo me aventuro, por vezes, nessas águas. Porém, às vezes, parece-me que os(as) artistas poderiam aprender um pouco com os publishers, e que estes poderiam observar com mais atenção o trabalho dos(as) artistas: teríamos conteúdos mais embasados e livros menos sisudos em sua apresentação, respectivamente.


No caso de Juliana Hoffmann, ela se propõe a fazer algo totalmente diferente disso: os livros não se tornam, em suas mãos, instrumentos de difusão de ideias, de distribuição de exemplares. Eles são estancados, interrompidos. Há um gesto bartlebyano de um preferiria não fazer, de uma interrupção brutal e desconcertante. Creio que a pergunta mais descabida – embora eu a tenha feito – que se pode fazer à artista é de onde vieram esses livros, qual a idade deles, quem os escreveu. Um experiente bibliófilo ou o antigo dono dos livros (que desconfio ser seu pai, o exímio escritor e poeta Ricardo L. Hoffmann) mataria a charada. Todavia, essa informação tem pouca valia no contexto visual que se experimenta ao observar esses trabalhos. Ater-se a esses detalhes é como quem vai a uma exposição e fica mais atento às etiquetas do que às obras, uma distração desnecessária.

Até mesmo porque o corpo em si de cada livro não mais existe. A encadernação desapareceu, restam indícios de que algum dia aquelas páginas pertenceram a uma brochura. Interessante imaginar que o primeiro ato da artista foi desfazer aquilo que havia sido brochado, costurado, para depois voltar a coser sobre as páginas. Desta vez, contudo, Juliana Hoffmann traz para essas superfícies o assombro de sua poética visual, feita de claros e escuros, florestas, vertigens, amarrações, perfurações. A leitura torna-se a coisa menos importante quando se percorre, com olhos táteis, suas obras. Há, portanto, uma inviabilização da função atribuída ordinariamente ao objeto livro – o ato de ler. Ele está como que abandonado de sua missão. E nada mais belo do que encontrar em algo (ou alguém) uma inversão radical daquilo que se espera dele. 

Leitor profano e agora livreiro, fui levado a colocar nas paredes da minha livraria um desses trabalhos. Uma certeza intuitiva de que ele precisava habitar o espaço da livraria  invadiu-me desde o primeiro momento em que vi essa série de obras de Juliana. Instalado no espaço, ele funciona como um outro polo magnético diante da multidão de livros que habitam as estantes. É como aquela mancha no escritório que vai transformando-se Bartleby, personagem de Herman Melville: aos poucos desaparece silenciosamente na repartição onde trabalha. Tem um poder radical de oposição, não pelo embate, mas pela simples presença inoperante. Essa inoperância atua na desativação de pressupostos, coloca-nos diante de outros sentidos inesperados, inventados, cheios de possibilidades.

Permita-me uma outra divagação: os livros de livraria têm títulos, autores que muitas vezes são autoridades, fichas bibliográficas, preços, enfim, toda espécie de informação (metadados) que faz com que existam profissionais específicos para dele tratarem. O objeto livro em nossa sociedade está inserido em uma lógica de mercado, pois possui um valor de troca estabelecido, como bem explicou Marx. 


À medida que certas edições tornam-se raras, os livros passam a agregar em seu valor de troca aquilo que Walter Benjamin chamou de valor de exposição, que nada mais é do que um valor simbólico que não se expressa na materialidade em si do objeto, mas sim naquilo que a sociedade projeta sobre ele, conferindo-lhe, muitas vezes, um valor extra que não está contido na matéria-prima ou na quantidade de trabalho socialmente necessária para a produção da mercadoria-livro. Juliana Hoffmann interfere nessa linha valorativa, coloca livros que outrora não tinham valores de mercado (mesmo num sebo seria difícil comercializá-los pelo péssimo estado de conservação) em uma outra posição, a de obra de arte, exemplo mais expressivo da ideia de valor de exposição


Há um aspecto do conhecimento que pouco se fala, mas que é sentido por quem se apaixona pelo universo dos livros e do saber, que poderia ser resumido pela expressão “o conhecimento pesa”. Diversos(as) clientes chegam à livraria e logo começam a apresentar o que chamo de “síndrome de opressão livresca”. São oprimidos pela quantidade de livros que acham que devem ler, culpam-se por não dedicarem o tempo que consideram necessário à leitura, martirizam-se quando não conseguem lembrar o título de um livro. Nesse mundo de metas em que vivemos, não é raro ver pessoas colocando por meta ler tantos livros por ano ou mês. 


Isso me lembra a história verídica de um amigo meu, professor universitário, que, em sua casa, tinha uma excelente biblioteca voltada para o campo da história, cinema e literatura. Com o tempo, ele começou a considerar aquela quantidade de livros um tanto opressora. Na impossibilidade de se desfazer dos volumes (ele era educador, os livros eram seus instrumentos de trabalho, assim como a pá e o nível o são para o pedreiro), mandou instalar no teto um trilho paralelo às estantes e neles pendurou cortinas opacas. Ele a mantinha fechada a maior parte do tempo, só a abria quando precisava de um livro.


Embora os livros utilizados pela artista quase sempre sejam de autores(as) reconhecidos(as) pela destreza literária, nem sempre os livros são bons mensageiros. Segundo a UNESCO, por ano, 2,2 milhões de livros são publicados. Imagine quanta asneira deve haver, sem falar no impacto ambiental e cultural de tamanha quantidade de asserções, muitas delas ilógicas ou doutrinárias. O livro é objeto profano, embora muitos tenham por hábito ou mania colecioná-los. 


Se as obras dessa série de Juliana Hoffmann fossem um livro, o primeiro capítulo seria ocupado por insetos nefastos, desconstrutores do mundo moderno: os cupins, as traças, toda sorte de seres vivos cuja atividade ataca frontalmente a materialidade do mundo erigido pelos humanos. Por mais que as bibliotecas e museus se esforcem, é sempre uma questão de tempo para que esses agentes vençam a batalha e decretem o descarte. 


O capítulo dois seria um amontado residual de cultura. O caso mais emblemático é o livro The building of modern world - Book III: Expansion of Europe, de J. A. Brandon, capa utilizada como suporte pela artista. O título progressista e eurocêntrico não resistiu às traças e aos cupins. Talvez um bom título para acompanhá-lo dialeticamente fosse o de Thomas Piketty, É possível salvar a Europa?; de minha parte, espero que sim, porque, após o colapso da União Europeia, estaremos mais perto do feudalismo do que da ideia de um mundo sem fronteiras, que será, novamente, adiado para as futuras gerações, isso se elas sobreviverem ao colapso ambiental em andamento.


Nós nos acostumamos a saber reconhecer que, mesmo na ruína, há beleza e sentido. Em última instância, essa capacidade atávica do sentido humano seja talvez a que torne possível continuar vivendo nos dias de hoje. Sorte nossa, como espécie. E como seres estéticos. Nossos olhos são invadidos por deleite ao observar a ação meticulosa da artista sobre as capas e páginas dos livros. E ela sabe exatamente o ponto em que deve parar de intervir, tem a habilidade de estabelecer um ponto degradante do objeto-livro, um momento preciso. Observar a obra de Juliana Hoffmann permite aquilo que falei de início, a capacidade de sair transformado de uma exposição. Porque, a partir de agora, eu verei os livros de outra maneira, porque, depois dessa visita, eu poderei imaginar coisas extraordinárias. O desenvolvimento desse sentimento seria o objeto do capítulo terceiro.


Não se sabe exatamente quando, mas um dia as coisas acabam. No caso dos objetos e dos seres, esse aniquilamento se dá aos poucos ou de repente. Existe um ambiente externo que investe impiedosamente sobre os livros: a luz solar, a umidade, os parasitas. Esses agentes não têm pressa, fazem seu trabalho lentamente, respeitando um ritmo de natureza vegetal. Contudo, existem outras causas para a aniquilação de livros que vêm de nosso mundo animal, dito inteligente e civilizado. Nesse mundo infame em que vivemos, não foram, e não são, poucos os episódios em que livros são censurados ou recolhidos ou queimados, desde o estabelecimento do evangelho canônico em detrimento dos textos ditos apócrifos, que marcou o surgimento da civilização do livro e do cristianismo, passando pela censura de costumes de Madame Bovary, de Gustave Flaubert, chegando à lista de livros impróprios elaborada pela Secretaria de Educação do Estado de Rondônia. 

O clássico de Ray Bradbury é aterrador pela atualidade. Sugiro dois trechos de Fahrenheit 451 que poderiam ser uma espécie de fechamento e de epílogo. O primeiro: Então, vê agora por que os livros são tão odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida. As pessoas acomodadas só querem rostos de cera, sem poros, sem pêlos [sic], sem expressão.



E o último: Será porque estamos nos divertindo tanto em casa que nos esquecemos do mundo? Será porque somos tão ricos e o resto do mundo tão pobre e simplesmente não damos a mínima para sua pobreza? Tenho ouvido rumores; o mundo está passando fome, mas nós estamos bem alimentados. Será verdade que o mundo trabalha duro enquanto nós brincamos? Será por isso que somos tão odiados? Ouvi rumores sobre o ódio, também, esporadicamente ao longo dos anos. Você sabe porque?[sic] Eu não, com certeza que não! Talvez os livros possam nos tirar um pouco dessas trevas. Ao menos poderiam nos impedir de cometer os mesmos malditos erros malucos!


1 Curador, historiador e escritor, foi diretor do Museu Hassis e chefe de serviço do Museu Victor Meirelles. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação de História Cultural da Universidade Federal de Santa Catarina, atualmente administra a Humana Sebo Livraria Galeria, em Chapecó-SC.

2 MELVILLE, Herman. Bartleby, O escrivão: uma história de Wall Street. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

3 MELVILLE, Herman. Bartleby, O escrivão: uma história de Wall Street. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

4 BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. Tradução Cid Knipel. São Paulo: Globo, 2012. p. 96.


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