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2020

Aquilo que aparece apesar de tudo

*Texto publicado no catálogo Sobre Viventes

Thays Tonin

Em uma primeira visita ao Ateliê de Juliana Hoffmann, uma cena entre os sedutores e irrequietos quadros e fotografias destaca-se: a tranquilidade de uma poltrona de leitura perto da janela, e, ao seu lado, um livro com marcações sobre a mesa, aguardando a continuidade de sua leitura. Pequeno e de capa branca e simples, em contraste com as obras de grandes medidas e cores escuras que tomavam o ambiente e os olhares, esse livro emerge como um ponto de luz, entre as árvores e florestas de Juliana Hoffmann. Qualquer maneira de imaginar é uma maneira de fazer política, diz o autor do pequeno livro, levando-nos a pensar, logo depois daquela visita, na sobrevivência da arte, da política, dos vaga-lumes. Os vaga-lumes de que falo são os de Pasolini, repensados no tal livro de capa branca Sobrevivência dos vaga-lumes, de Georges Didi-Huberman. Vaga-lumes foram a metáfora escolhida por Pasolini para simbolizar, em uma carta a um amigo nos anos 1940, os lampejos do desejo animal e as gargalhadas ou os gritos da amizade humana [...] como uma alternativa aos tempos muito sombrios ou muito iluminados [pelos holofotes] do fascismo triunfante. Ainda que na tese histórica de 1975 Pasolini desacredite na possibilidade de qualquer vaga-lume ainda existir, devorados pela noite – ou, em outras palavras, refletindo que o fascismo não fora nunca vencido e continuava a emergir totalmente e imprevisivelmente novo - Didi-Huberman, em contraposição à visão apocalíptica de Pasolini, relembra sua energia poética e política. Em seu livro, afirma que os vaga-lumes somente desaparecem na ofuscante claridade dos ‘ferozes’ projetores, e que há na cultura a verdadeira capacidade de resistência histórica, logo, política, em sua vocação antropológica para a sobrevivência.


Ocorre que, naquela visita ao Ateliê, em um contexto em que as palavras de Pasolini e Didi-Huberman tomam novos e assustadores sentidos, organizávamos a exposição Sobre Viventes. Como não ver, portanto, nas pequeninas perfurações das páginas de Juliana Hoffmann (Figura 1 e 2), a vontade dos vaga-lumes de existirem e se fazerem ver, apesar da claridade ofuscante do mundo contemporâneo?  A luz que passa a partir de perfurações e bordados com o intuito de nos fazer olhar com mais atenção aos detalhes por dentre a profundidade das entenebrecidas árvores e raízes traz consigo, não só a supervivência dos lucciole (vaga-lumes), mas a memória que resiste nas páginas de livros clássicos, herdados da biblioteca de um literato familiar, e o costurar dessas memórias pelas linhas bordadas e apreendidas a partir do tempo usufruído com a mãe. 



Como não ver também, nas pinturas da artista (Figura 3), os lampejos do desejo, a necessidade de dizer que as florestas ainda sobrevivem, ainda resistem e precisam resistir, lampejo por lampejo? Em cada caixa de luz, o respiro, a ressurgência da força e não do fardo da memória preservada e que preserva, portanto, por lembrar.


Em meio ao contexto ambiental e cultural brasileiro que tenta resistir às profundas descrenças na utilidade de salvaguardar histórias, culturas e regiões, Juliana Hoffmann faz ver, no seu próprio jogo chiaroscuro, a força política e poética de sua obra, efeito tanto da proximidade dos eventos mas também do poder imanente das imagens de evocar, em diferentes momentos e sob distintos olhares, mais sentidos, sintomas e discursos do que os que talvez queriam se fazer ver. É tão imensa a possibilidade destruidora da cultura quanto o é a possibilidade criadora da arte. Assim, as imagens sobreviventes dessa artista, antes de serem ruínas de um tempo por vir, são ainda lembranças pungentes de um passado presente, de um contemporâneo difícil de ver e costurar, todavia, de um cenário possível, de um agir narrável e feito por imagens. Não à toa, logo na primeira sala de exposição, a obra “bancada de luz” (Figura 4), em que se encontram cinco páginas envoltas em acrílico, perfuradas sempre em contraposição ao cinza das árvores, e bordadas com um fio de tons bordô, faz-nos lembrar do Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg. 



Em outro livro, escrito pelo mesmo autor de Sobrevivência dos vaga-lumes, o atlas, pensado como uma forma visual do saber, uma forma sábia do ver, foi também um exercício de leituras sobre imagens colocadas à mesa. A bancada de luz deixou livre ao público alterar a posição das páginas, inclusive para fora da luz que emana da parte inferior, trocando os lados da obra, e assim, modificando o que se vê entre luz e ausência de luz, entre frente e verso da obra (Figura 5). Ora, esse princípio movente e provisório, que faz surgir inesgotáveis relações entre as imagens e o público, o qual as conecta a partir de suas próprias relações mnemônicas, passa a lembrar, portanto, de um princípio-atlas, de uma montagem e remontagem, relembrando, também, a partir da cor sangue dos bordados, a conexão vivente das imagens, uma veia pulsante que tutora as árvores em cuidado e apoio sensível ao contínuo crescimento.



Ademais, do início ao fim da exposição Sobre Viventes, apesar dos diferentes suportes, vemos correlações entre as obras da artista, aspecto este que faz aparecer a trajetória de suas experimentações que chegam às composições atuais. Das páginas de livros corroídos pelo tempo e que assim passam a fazer ler outras coisas; das caixas de luz que jogam com a possibilidade de ver ou desver o detalhe; das pinturas que nos engolem levando a paisagens distantes ou presentes na memória... portanto, da fatura única de Juliana Hoffmann, emerge um arquivo poético e político da arte catarinense.

 

A exposição parece demandar, ainda, que o peso do contemporâneo não seja esquecido, que o espaço da arte não seja uma pausa da realidade sufocante, mas o respirar necessário para que retornemos a ver vaga-lumes. Sobre Viventes é, portanto, o lembrete de que se a arte é o estertor de um tempo, ainda há vida que teima em perviver nos encontros entre história e arte.





 1DIDI-HUBERMAN, G. Sobrevivência dos vaga-lumes. Trad. Vera Casa Nova, Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

 2Idem, Ibidem., p. 8.

3 Idem, Ibidem, p. 20.

4PASOLINI, P. P. “L`articolo delle lucciole (1975)”. In: PASOLINI, P.P. Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 1999. p. 404.

5 DIDI-HUBERMAN, G. Op. Cit., p. 30-33.

6 O Atlas Mnemosyne é um atlas figurativo, criado pelo historiador alemão Aby Warburg (1866-1929), com colaborações de Gertrud Bing e Fritz Saxl. O Atlas de imagens é composto por diversas tábuas (Tafeln - o jogo de funções entre tábua, mesa e painel tem sua importância) e constituído a partir de fotografias e reproduções de diferentes produtos culturais, considerados testemunhos de experiências temporais e, sobretudo, experiências culturais do Primeiro Renascimento Italiano. Dentre seus testemunhos, estão: obras de arte, páginas de manuscritos árabes, gregos ou latinos, jogos de divinação, objetos do cotidiano laico e secular, fragmentos de descobertas arqueológicas da Antiguidade grega, romana e oriental, e, ainda, outros testemunhos da herança cultural do século XX europeu, tais como clipagens de jornais, selos de cartas, moedas, e outros. Assim, a proposta do Atlas é a de fazer um exercício ilustrado, ao relacionar imagens a partir da compreensão dos mecanismos da memória que ligam os temas e figuras de uma cultura. Uma versão on-line do Atlas encontra-se no site Engramma. Disponível em: 

http://www.engramma.it/eOS/core/frontend/eos_atlas_index.php?id_articolo=1177. Acesso em: 15 jan. 2020.

7 DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas ou o gaio saber inquieto. O olho da história, III. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. p.18.

8 CHEREM, Rosangela Miranda. Seis questões para pensar a relação entre história e arte. In: FLORES, M. B. R et al. (org.) A casa do baile: estética e modernidade em Santa Catarina. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006.

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