2020
A Artista por ela mesma em 4 fragmentos
*Texto publicado no catálogo Sobre Viventes
Juliana N. Hoffmann
Memórias da infância que habitam em mim
Desenvolvimento das Séries
Sobre Viventes
Exposição, um trabalho coletivo
Memórias da infância que habitam em mim
Quando eu nasci, morávamos em um apartamento no Centro, bairro vizinho à Agronômica e pertinho do
Campo da Liga, em Florianópolis. O espaço era pequeno para comportar quatro crianças – eu e minhas
irmãs -, pai, mãe, uma ajudante e, às vezes, a avó. A agitação era enorme, quase um estresse para toda a
família. Por isso, nos finais de semana, íamos para o sítio, no Rio Tavares, para nos aproximarmos da
natureza, relaxar e curtir a vida ao ar livre. O terreno era grande, coberto por árvores e bambus, com duas
fontes d ́água, uma delas era um pequeno buraco quadrado cavado na terra com as paredes forradas de
pedras e coberta com uma chapa metálica. Ali bebíamos água fresca. A outra fonte, na parte mais baixa do
terreno, transformava-se em um pequeno lago onde, sobre uma pedra na margem, as vizinhas lavavam
roupa.
Um pouco acima do lago, havia uma árvore imensa, a maior da propriedade, que o pai dizia ser uma
nogueira - não tenho certeza se era mesmo, mas nós a batizamos com esse nome. A sombra da árvore
cobria praticamente a metade do terreno e enchia a terra de sementes que se pareciam com uma noz.
Muitas vezes fizemos mutirão em família para juntar todas as nozes em sacos enormes, quase do nosso
tamanho. Nessa árvore também havia um balanço que ia tão alto que, literalmente, nos fazia voar
atingindo quase a copa das outras árvores e o alto das varas de bambu. Essas lembranças sempre
estiveram presentes em minha memória. Assim como a cena em que a família, ao chegar no sítio para
passar o final de semana, ia até o quartinho de ferramentas pegar os ancinhos para rastelar o terreno
repleto de folhas secas – cada um tinha a sua própria ferramenta. Por segurança, era necessário limpar ao
redor da casa e ficar bem atento no verão, já que, por vezes, apareciam algumas cobras. Ficava horas
rastelando, era minha brincadeira preferida! Gostava também de caminhar sozinha, mergulhada em meus
pensamentos e sonhos, principalmente à tarde, quando todos descansavam. E, na hora do sol e calor forte,
normalmente após o almoço, o local ideal era a varanda da casa, com várias redes para descansar e
exercitar a escuta e a observação da natureza.
Foi na infância que iniciamos as sessões de leitura com a família, sempre livros de escritores estrangeiros,
pois o objetivo era ensinar a língua inglesa, para, posteriormente, darmos aulas e complementar a renda
familiar. Meu pai era fã de Lewis Carol e, com ele, devo ter lido umas três vezes Alice no País das
Maravilhas. Inspirado nesse título, fez um jogo de cricket para brincarmos no sítio. As caçapas eram
feitas de copos grandes de iogurte enterrados no chão, os tacos, de galhos e troncos de árvores da limpeza
do terreno, e os arcos, feitos com ferro de construção.
Desenvolvimento das séries
Meus primeiros trabalhos retratavam a Ilha rural na série Desenhos dos Anos 80. Depois, a cidade foi
crescendo rápido, e eu também. Envolvi-me com estudos, trabalho e a casa, distanciando-me do cenário
rural. Minha produção passou a representar, naturalmente, os ambientes domésticos na série Interiores.
Em seguida, fiquei incomodada e hipnotizada pelos centros urbanos, cobertos de cimento e asfalto, com
as imagens sobrepostas, com o ser humano perambulando e com o pouco espaço para o verde, resultando
na série Cidades.
O desenvolvimento acelerado e desordenado alerta-nos a todo momento para os estragos, talvez
irreversíveis, que a humanidade está causando ao meio ambiente. Isso não sai de meu pensamento! Toda
matéria deteriorada resultante do abandono interessa-me, e, a partir do final da década de 1990, começo a
trabalhar com revistas e jornais velhos. Sem conseguir desapegar-me e jogar no lixo as publicações com
material tão rico, começo a série Ruínas - A Construção do Mundo Moderno, que se vai desdobrando em
diferentes suportes que aparecem em meu caminho, como fotografias estragadas pela umidade, vidros
quebrados, manchas de fungo e mofo nas paredes, madeiras e livros comidos por cupins e traças...
Em 2015, um novo cenário toma conta do meu cotidiano com a mudança do centro da cidade para um
bairro pacato, rural e menos urbanizado, no norte da Ilha. Atrás da minha casa, tem um morro coberto de
árvores, uma Área de Preservação Permanente (APP), e os galhos chegam até a casa como se quisessem
estender os braços para me tocar. Em dias de vento forte, batem no beiral do telhado. Desde então, as
florestas tomam conta do meu pensamento e começo a série Sobre Viventes, tema desta publicação.
Somente nos últimos anos, organizando meu arquivo de fotos, consegui entender de que forma meu
trabalho, resultado de um processo intuitivo compulsivo, foi desdobrando-se.
Sobre Viventes
Naturalmente florestas foi o tema escolhido para essa nova série, numa decisão pessoal e direção
sinalizada por artistas, como Anselmo Kieffer, Gerlind Pristner, O Tropicalista, Fernando Lindote, entre
outros. Antes, havia desenvolvido a série The Building of the Modern World, a partir de livros corroídos
por traças e cupins.
A transição para Sobre Viventes deu-se a partir do trabalho de impressão de imagens de árvores sobre
páginas de livros antigos que, posteriormente, foram bordadas e perfuradas. Ao ver essas florestas escuras
impressas, introduzo o gesto de perfurar os troncos simbolizando poros para respiros. Após anos de
experimentação, principalmente com fotografia, começo a pensar em voltar para a pintura, motivada por
duas razões: a crise econômica que assola o país, pois o processo fotográfico que vinha utilizando junto à
pintura era muito caro, e, fundamentalmente, pelo desafio do exercício da pintura pura. É necessário sair
da zona de conforto, e minhas pinturas iniciadas em meados dos anos 1990 chamavam-me para dar
continuidade.
Quando comecei a pintar as florestas, tinha certeza de que seriam as florestas iluminadas de minha
infância e juventude, porém o preto, sem que eu quisesse, foi tomando conta das telas. Senti-me sufocada,
mas os poros das árvores foram dominando a tela, libertando-se da matéria e criando florestas que levitam
em direção ao céu. A luz ainda resiste por trás das inúmeras veladuras negras. Há esperança!
O artista nunca tem total controle do trabalho. Em determinado momento, a obra leva-nos, nossos
pensamentos e memórias tomam outra direção, e o melhor é nos deixar levar. Quando se tenta racionalizar
a criação, inevitavelmente, estamos seguindo exigências ou modismos externos e não um desejo íntimo, e
a obra deixa de ser genuína.
Sinto que, na arte, atualmente, cada vez mais nos distanciamos dos desejos internos, e o excesso externo
acaba conduzindo e contaminando a criação artística; passamos a ter criações coletivas homogeneizadas.
Não à toa, os artistas precisam do isolamento. Mesmo assim, a tecnologia na palma da mão traz o mundo
para o nosso ambiente privado.
Para o poeta americano H. D. Thoreau, a simplicidade e despojamento do homem nos tempos primitivos
traz pelo menos esta vantagem, que lhe permitia ser apenas um hóspede da natureza.
[2] Quando o homem
passa a querer ser dono da natureza, começa todo desequilíbrio do mundo. O mundo é o produto da vida
vegetal. O que o homem está fazendo com a natureza e o que está por vir? Segundo Emannuelle Coccia,
em A Vida das Plantas, não se pode separar nem fisicamente, nem metafísicamente a planta do mundo
que a acolhe, ela é a forma mais intensa, mais radical, mais paradigmática de estar no mundo. Interrogar
as plantas é compreender o que significa estar no mundo.
[3]
Trabalho sempre em cima de questões que me rodeiam e me incomodam, e são estas as reflexões que
tomam conta do meu pensamento no momento. Por isso, escolhi trabalhar o assunto floresta como uma
prática para pensar o mundo. Em busca de expressar meu pensamento da melhor maneira possível, vou
experimentando diferentes materiais e técnicas, como pintura, fotografia, vídeo, manipulação digital de
imagem, backlight, instalação interativa, costura, perfuração e diferentes materiais, como papel, linha,
tela, tinta, vidro e acrílico.
Exposição, um trabalho coletivo
Nenhum trabalho completa-se no isolamento. A obra de arte precisa circular, expandir e criar vida própria
a partir das trocas geradas. Ao mesmo tempo que se impõe, a obra permite ser invadida e analisada; uma
obra denuncia, dialoga, transforma. A principal função da arte é transformar o mundo!
A exposição é o momento dessa troca coletiva, que envolve uma grande produção para fazer a obra chegar
até o público visitante. Sempre é bom lembrar dos muitos profissionais diretamente envolvidos desde os
que produzem o material utilizado aos encarregados da moldura, do transporte, e da galeria, com seu time
de apoio, que inclui designer gráfico, curador, assessoria de imprensa, entre outros.
Para ajudar a pensar e a montar a exposição Sobre Viventes, e levar ao público a melhor ideia de todo o
processo, convidei a professora da Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC) e curadora
Rosângela Cherem, com a qual me relaciono há algum tempo e acompanho seu trabalho. Além do seu
conhecimento em história da arte e filosofia, considero muito importante as articulações que a curadora
faz entre a instituição, a sociedade e os diferentes circuitos, envolvendo alunos e artistas de diferentes
gerações, tornando o processo mais participativo e, ainda, compartilhando o conhecimento acadêmico.
Penso que é fundamental a conexão da comunidade como um todo interligado e não a formação de guetos
isolados.
Em Sobre Viventes, a curadora convidou três de seus alunos do curso de Artes Visuais da UDESC para
assinarem a cocuradoria. Foram várias visitas ao ateliê e à galeria, muitas conversas e escutas, trocas que,
com certeza, tiveram um forte impacto no resultado final e desdobramentos, como conversa com a artista
durante o período da mostra e o lançamento deste livro/catálogo, premiado pelo Edital Elizabete Anderli.
Com relação ao meu processo de criação, o trabalho da curadoria em equipe ajudou-me a tomar decisões e
definir caminhos para a exposição, já que sou, por vezes, muito compulsiva e caótica enquanto crio, e
falta-me distanciamento por estar totalmente envolvida na criação. Outro ponto que quero destacar foi a
mistura de gerações a partir do convívio com os estudantes, uma das experiências mais enriquecedoras
para mim, em que os mais velhos contribuíram com suas experiências, e os mais jovens, com as
inquietações, curiosidades e o frescor da idade.
[1] Este texto é dedicado a Marilza (in memoriam), minha mãe, mas também professora, dona de casa, esposa, irmã, tia, avó,
imagem de mulher múltipla num mundo ainda não igual. Também é dedicado ao Nélio, por sempre apoiar minhas
experimentações e desmesuras e, desta vez, por trabalhar junto na execução e montagem de Sobre Viventes.
Agradecimentos a Helena Fretta, cujo convite para fazer uma exposição individual em sua galeria remonta há bastante tempo,
mas que se manteve, apesar do acúmulo de atividades, imprevistos e compromissos de ambas as agendas. Gratidão extensiva à
sua equipe muito comprometida, profissional e prestativa.
Obrigada aos colegas e amigos por compartilharem de coração aberto, escrevendo de modo sensível para dizer em que ponto a
obra os tocou, abrindo novos caminhos de pensamento reflexivo sobre as obras. Também obrigada ao Ateliê Digital de O Sitio,
pela parceria na execução do vídeo.
Obrigada, particularmente, ao público que confiou e tirou um tempinho para prestigiar a mostra. Créditos ainda à equipe
curatorial que se dispôs a acompanhar o meu trabalho, dialogando com curiosidade, interesse e parceria: Rosângela Cherem,
responsável, e os cocuradores Thays Tonin, Flávia Person, Andrey Parmigiani
[2] THOREAU, H. D. Walden. Porto Alegre: L&PM POCKET, 2017, p.47.
[3]3COCCIA, Emannuelle. A Vida das Plantas. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018.